Palavras-chave: comunicação,
Páscoa, para-musealização, sinos, Terras da Lusofonia, Terras de Magriço, Terras
do Demo
“Tlão … ressoam
os bronzes da sé … tlão … badaladas, lentas no respirar suspenso … tlão …
arrastadas no nervoso dos corações … tlão … seus semblantes rígidos, olhos
vigilantes … tlão … cinco … as mãos aferradas às coronhas das pistolas … tlão …
seis … dos punhos de punhais, dos cutelos … tlão … sete … ih! cum raio! … tlão
… oito …
Ao soar da última pancada, as sentinelas vêem chegar
um fidalgo que se apeia de pomposo coche, como a ter audiência com Sua
Excelência o secretário de estado … [Miguel de Vasconcelos].
- A esta hora? – dá um passo em frente um dos guardas,
a alabarda atravessada a barrar caminho.- Sua Excelência está ainda recolhido.
Não é ocasião de despacho. Mostrai-me a convocatória …
- E quem és tu para me embargares a subir? – e o
punhal resolve o caso, vai o outro a abrir a boca a gritar o alerta, já alguém
surgido do lado lhe corta o grito com a lâmina afiada.
Saídos das sombras dos arcos, sobem os revoltosos a
escadaria a toda a pressa. Sentem o arruído os alabardeiros e acodem de armas
em riste. Cruzam-se, tinem, faíscam espadas, soam tiros, Miguel de Almeida, de
saber em punho, assoma à varanda – esvoaço-lhe [é o vento a narrar] os cabelos
brancos – e grita ao povo:
- Liberdade! Liberdade! Tempo de comprar com sangue a
liberdade da pátria e acabar com a tirania de Castilha. Viva Sua Alteza o duque
de Bragança! Viva el-rei Dom João quarto!
Em baixo, com eco, lágrimas a escorrerem pelas faces,
reboa o clamor das gentes:
- Viva el-rei Dom João quarto!
O troço destinado ao forte põe em fuga os
soldados castelhanos. Não sem luta. Combatem rijo […]” (1)
&
Torres e sinos de transmissão
mensageira
No meu país sois património
De importância primeira.
Despertais
atenção e comunicação;
Quiçá
dor alvoroço alegria aflição
Tempo
festa folia reunião e revelação.
Por altura da Páscoa
lembram-me os toques dos sinos na minha aldeia. Excluindo o período de paixão e
vigília (2) desde tempos remotos se utilizaram os sinos. Regularmente ao
alvorecer podia ouvir o toque das almas. Ao meio-dia e cinco minutos o Ângelus
lembrava a Anunciação do Anjo Gabriel a Maria. Os fiéis respondiam com uma Avé
Maria. Antes do cair da noite tocava a Trindades. Eram momentos para
reflexão, oração e recolhimento. Alguns pais faziam questão de que os filhos
estivessem em suas casas antes do ecoar da última badalada.
À tarde tocava para o terço e/ou missa; aos domingos e dias santos tangiam sonoridades para as eucaristias. O último toque do dia fazia-se com o cair da noite. Era o toque das almas ou toque das Avé Marias. A estes toques de rotinas juntavam-se os toques horários.
À tarde tocava para o terço e/ou missa; aos domingos e dias santos tangiam sonoridades para as eucaristias. O último toque do dia fazia-se com o cair da noite. Era o toque das almas ou toque das Avé Marias. A estes toques de rotinas juntavam-se os toques horários.
Com a eletrificação, o
velho relógio de carretos e cremalheiras foi substituído e automatizado. As
horas passaram a ecoar através de um par de altifalantes instalados na torre. A
automatização permitiu assinalar horas e meias horas antecedidas do Avé
Maria.
No dia de Páscoa
tocavam os sinos pela tarde inteira enquanto decorria a passagem do
pároco e comitiva pelas casas transmitindo os cumprimentos e a Boa Nova: “Cristo
ressuscitou, aleluia, aleluia”. Fora das rotinas, os sinos anunciavam
cerimónias e avisos: batizados, casamentos, enterros. Os toques a rebate
aconteciam em caso de fogos em casas, aos quais acudia a população com
cântaros, regadores, machados … Em caso de incêndios nas matas, tocavam a
rebate, tomavam-se enxadas e ramos para extinguir chamas.
Distintos em mais de uma
dezena de casos, os toques têm o seu código próprio. As várias sonoridades,
ritmos e frequências determinam o tipo de informação que veiculam. Podem tanger
sons tristes ou alegres, lentos, rápidos ou ultra rápidos, dobrados ou
singelos, fortes ou leves. Em caso de morte, permitem informar o tipo de
pessoa: adulta ou criança. Hoje em dia continuam vários destes trechos
sonoros. Os sinos cumprem várias funções: de sinalização horária, chamadas para
cultos, cerimónias e emergências. De tão presentes e disponíveis, quase não
interiorizamos o seu real valor.
Nas últimas décadas os
sinos perderam alguma importância, fruto de alterações na vida social e
tecnológica. Os relógios de pulso e telemóveis, hábitos diversos, televisão,
informática e uma quebra de hábitos religiosos têm determinado alterações de
hábitos. O toque dos sinos passa despercebido, sobretudo para os mais novos.
Todavia começa a haver um novo olhar e sentir destes objetos, seus toques e
códigos.
Há exemplos de musealização
de torres, sinos e casas de sineiros. Um exemplo: “Em 23 de outubro de 2014,
a Sé de Leiria, incluindo o claustro, adro envolvente, a torre e a casa do
Sineiro, foram classificados como monumento nacional” (3) .Em algumas
torres e casas de Sineiros decorrem exposições de vário teor.
Torre e casa do sineiro de Leiria. Imagem
gentileza do blogue picosderoseirabrava
Outro
exemplo vem-nos de Minas no Brasil: “As igrejas de São João del-Rei tem
(sic) um interessante e peculiar sistema de comunicação através dos sinos.
Sabe-se por exemplo, pelo repique, dobre ou toques onde será realizada a
solenidade; se haverá procissão; hora de missa, quem será o celebrante e muitas
outras informações. Nos dobres fúnebres fica-se sabendo se a pessoa falecida
era homem ou mulher e até mesmo qual será o horário do funeral […]” Cf.
OLIVEIRA: 2007 (4).
Devido
a este património histórico, cultural e turístico, os toques dos sinos foram
classificados como Património Imaterial Brasileiro em 2009, dando-lhe o Governo
Estadual de Minas Gerais e São João del-Rei uma importância cultural e
turística da maior relevância.
Imagem da torre sineira da Beselga
Vivendo
no Adro da aldeia (Beselga-Penedono) muitas vezes aos domingos ouvia: “Já tocou
duas vezes, tocou a terceira, só falta o pique”, após o que se seguia a
Eucaristia. Lembro o grande incêndio na casa dos Titas (5). Era alta noite, os
sinos deram o alarme. Acorreu gente de todo o povo. Mulheres e Homens com
cântaros cheios de água. Na altura, cerca de 1960, não havia luz elétrica nem
água canalizada. Os sinos eram o grande auxiliar, sem eles seria difícil ou
impossível circunscrever e extinguir incêndios; alertar para perigos em
tempo útil.
É
comum situar-se o início da utilização dos sinos por volta do século VI, altura
em que começam a ser paulatinamente construídas igrejas nos povos convertidos
ao cristianismo. O som era considerado a “Voz de Deus”. Afugentavam perigos,
unia as pessoas, davam-lhes segurança. Há inclusivamente sinos com inscrições “Fugo
fulmina, ventos dissipo” segundo investigação do antropólogo Paulo Ferreira
da Costa (6).
Dizia
uma figura típica da minha Terra - o Alberto Pereira, mais conhecido por
Alberto Francês:
“Não
há sinos tão afinados como os da Beselga. Quando bem tocados parece que subimos
ao céu”.
A
este preceito também escreveram autores de referência como Miguel Torga
caracterizando diferentes modos de operar os sinos. Em Novos Contos da
Montanha (1966) dizia este sóbrio Duriense:
“Os
sinos tocavam festivamente, ia por toda a aldeia um alvoroço de noivado […]
pela coragem com que puxavam a corda do badalo, pela maneira como repicavam ou
dobravam, sabia-se a que terra pertencia o cadáver que baixava à cova. Cada
aldeia enterrava singularmente os seus mortos. Os de Leirosa, bonacheirões,
pacíficos, pobres, tocavam pouco, devagar, sem vontade e sem brio. Mas já os de
Fermentões, espadaúdos, carreiros e jogadores de pau, homens de bigodaça e de
mau vinho, davam sinais de outro modo, viril e triunfalmente.” (7).
Hoje
em dia os sinos continuam a ser imprescindíveis mas, ainda que pudessem ser
dispensados, conviria preservá-los como património memorial e instrumentos de
comunicação de recurso, tal como acontece com o código de Samuel Morse, o
código de bandeiras, os faróis e faroleiros e os pombos-correios, porque nunca
se sabe quando os sistemas modernos podem falhar. Todavia há esperança. As
torres e os sinos vêm sendo objeto de salvaguarda e de aproveitamento para
funções nobres ou mesmo musealizados.
Imagem de
torre sineira e de relógio da Horta - Faial. À curiosidade desta peça de arte e
funcional acresce o facto de que é um dos poucos exemplares de torres
sineiras independentes da arquitetura das igrejas, tal como acontece em Leiria,
Penedono ...
O
presidente do Cabido da Sé chegou a ouvir “modinhas populares” tocadas
pelos sinos e, depois da implantação da República, há informações de que
foi pedido ao sineiro "para tocar 'A Portuguesa' e outras melodias
republicanas"(8). As torres, sinos e toques estão para alindar,
informar e animar todo um bairro, aldeia, vila, cidade. São património material
e imaterial contribuindo para a diversidade, a riqueza urbana e turística.
DESEJO A TODOS UMA
PÁSCOA COM BOLOS MIMOS E FELICIDADES MIL
Notas e
fontes em linha:
(1)CAMPOS, Fernando – O Lago Azul.
Viseu: Difel, S. A.; Tipografia Guerra, 2007, p. 304. OBS. Caro leitor. Se
puder adquira este livro. O Autor tem veia literária, também de historiador,
cientista e filósofo. Nesta obra ele descreve, através do romance, páginas de
História de Portugal e dos descendentes de D. António Prior do Crato que terá
sido proclamado Rei de Portugal após a morte de D. Sebastião e reinado,
sobretudo nos Açores. Fernando Campos põe o vento como narrador; este
está em todo o lado, em todo parte ele pode ocorrer, descrevendo,
tomando partido, maroto por vezes. Além do romance dá-nos a conhecer o destino
do rei exilado e da sua prole, que é também a prole do rei Venturoso D.
Manuel I. O ambiente entre católicos e protestantes, o nascimento da nação
holandesa, as paisagens suíças, as guerras de religiões, o definhar de
Portugal quando integrado na monarquia dos Filipes, a Restauração da
Independência de Portugal ... Um livro pleno de conhecimentos que ajuda a
esclarecer a nossa própria identidade; também as virtudes do amor e a
malignidade da sua antítese.
(2)Na altura do tríduo, após a
crucifixão e até à vigília pascal o acesso aos sinos da Beselga era interdito.
Contudo permitia-se o uso dum instrumento a que chamávamos tréculas,
construído em madeira e tabuinhas volantes que batiam umas nas outras fazendo
imenso barulho. Através deste instrumento a rapaziada encarregavam-se de avisar
os paroquianos dos momentos mais expressivos da Paixão. O Oiteiro do Pregão
era um dos locais preferidos para tocar as tréculas, tal como o foi
noutras situações de transmissão da voz natural e do som.
(34OLIVEIRA, Silvana Toledo de
“Revista Eletrônica de Turismo Cultural”, 2º semestre, 2007 in http://www.eca.usp.br/turismocultural/silvana.pdf
(5)Consta que os irmãos Titas
(António e José) enlouqueceram com as minguas da miséria no pós II Guerra
Mundial, o final da laboração das minas de Santo António da Granja de Penedono
e a morte do seu pai, não tendo a mãe conseguido lidar com tal situação. O
António permaneceu na aldeia e de vez em quando fazia viagens, mais ou menos
prolongadas pela região. Tinha o hábito de abordar as pessoas a quem passava
“cheques” (geralmente um pedaço de papel qualquer) pela compra de um
determinado bem, geralmente imóveis. Não consta que alguma vez tivesse feito
mal a alguém. Já o José era menos comunicativo e ditou a sua sentença de
reclusão quando foi acusado de ter ateado fogo à casa. Foi então levado para um
asilo até que por lá morreu.
(6)COSTA, Paulo Ferreira da - in
http://www.superinteressante.pt/index.php?option=com_content&view=article&id=1939:toques-afinados&catid=9:artigos&Itemid=83
(7)TORGA, Ob. cit. 12ª Ed. 1952, p.
41; 65
(8)Cf. Os sinos de Leiria têm
histórias para contar; Sé de Leiria in http://www.regiaodeleiria.pt/blog/2011/12/23/torre-da-se-os-sinos-de-leiria-tem-historias-para-contar-fotogaleria/;
http://pt.wikipedia.org/wiki/S%C3%A9_de_Leiria
Outras Fontes em linha, acedidas em 13.04.2017:
-ANCIÃES, Alfredo Ramos – “038. Portugal é Memória é
Presente é Mar e é Futuro” - http://cumpriraterra.blogspot.pt/2015/03/38-torres-e-sinos-que-tanto-dais.html
-BARBOSA, Rosangela; SÁ, Marco António
http://portal.iphan.gov.br/portal/baixaFcdAnexo.do?id=1870
-CAVALCANTI, Maria Laura Viveiros de
Castro; FONSECA, Maria Cecília Londres – “Património Imaterial no Brasil” http://unesdoc.unesco.org/images/0018/001808/180884POR.pdf
;
-LEIRIA, Manuel; CLARO, Sérgio, et
al. – “Os sinos de Leiria têm histórias para contar” http://www.regiaodeleiria.pt/blog/2011/12/23/torre-da-se-os-sinos-de-leiria-tem-historias-para-contar-fotogaleria/
-TORGA, Miguel – “Novos Contos da Montanha”.
Coimbra: 12ª ed. 1952. Disponível in https://cld.pt/dl/download/ba71439a-c0fb-496c-8c1c-15faff92d8ee/Miguel%20Torga%20-%20Novos%20contos%20da%20montanha.pdf?public=ba71439a-c0fb-496c-8c1c-15faff92d8ee
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