sexta-feira, 24 de novembro de 2017

AS LINHAS DA IDENTIDADE


Pretende-se com estas linhas da identidade:

a)observar e sentir in loco o Território das Linhas de Torres, como uma entidade viva e cujo conceito (Linhas de Torres e da Identidade) se pretende alargar a todo o Território onde houve intervenção de ações integradas na terceira invasão napoleónica;

b)reconfirmar a identidade de independência que nos torna mais coesos como herdeiros e atores da portugalidade que se moldou na dor e no sacrifício, pelo menos desde 1147, altura em que D. Afonso Henriques e o seu séquito chegam a estas paragens, coincidentes com as Linhas de Torres e envolvência. Este é também o Território de Santiago (de Espada e dos Velhos), cujas marcas da reconquista por aqui se encontram em Arruda dos Vinhos, concelho que faz parte do PILT – Projeto Integrado das Linhas de Torres.

O que por aqui, no PILT, podemos ver e noutras localidades relacionadas com os territórios da terceira invasão não são fetiches, meras peças de arqueologia e paisagem, mas sim importantes testemunhos de memórias: pessoais e do matrizmónio, isto é da relação das populações que partilham a portugalidade com a matriz territorial.

Esta identidade também se molda quando «[...] Massena, indignado, reclama de Wellington uma guerra de cavalheiros e não de assassinos. Este responde-lhe que não se trata de assassinos mas de homens das Ordenanças [milícias portuguesas] e que os [...] actos que praticam não eram mais do que uma leal e forçosa consequência das guerras de independência que transformavam uma guerra política numa guerra de extermínio (1) ]. Prosseguindo este ponto de vista, na peugada de Wellington, o prof. António José Telmo acrescenta que esta «é a guerra de um exército contra os povos da Península, animados por um patriotismo exacerbado contra o invasor que procurava impor com mão de ferro hábitos, religiões e costumes estranhos.» (cf. PINTO, ob cit., p 130-131)

(1) Sim, pode-se considerar guerra de extermínio o conjunto de baixas e malefícios provocados pelas invasões francesas. Só para exemplo de baixas do próprio lado francês e só na terceira invasão, relacionada com as Linhas de Torres; as tropas napoleónicas entram em Portugal com 88.515 homens e uma parafernália de equipamentos e animais. No regresso a França contabilizaram cerca de 41.000 pessoas, o que significa 47.515 baixas, mais de 50% do total. Contudo, contabilizadas as baixas diretas em combate, os números apontam para a ordem dos 10.000 soldados. Daqui se infere que a grande maioria de baixas se deveu a morte e perdas em outras situações, algumas bem mais sofríveis, tais como: rixas, míngua de alimentos, doenças e deserções das fileiras, acabando muitas destas também em morte.

ALÉM DA RECUSA DO IMPERIALISMO LIBERAL GERA-SE UM SENTIMENTO ANTI-INGLÊS DE RESISTÊNCIA INDEPENDÊNCIA E PATRIOTISMO:

Começam por sugir atritos em Mafra e Alhandra, não sendo as ordens dos ingleses bem recebidas. Algumas foram mesmo contestadas, tanto mais que não respeitavam as habituais hierarquias sociais, mobilizando elementos do clero, nobreza, burguesia, representantes da justiça e das finanças, o que levou alguns a recusar-se participar directamente nos trabalhos das fortificações.

«O Coronel Fletcher comandante dos engenheiros do exército Britânico, achando, para as muitas obras que tem, muito poucos trabalhadores [...] mandou pedir todos os homens sem excepção de pessoa alguma, nem mesmo eclesiásticos [...] custou-me muito persuadi-lo [diz o governador de Mafra] fosse metade da população uma semana e metade outra e que alternadamente assim continuaria, para poder haver trabalhadores que fossem trabalhar pelos eclesiásticos, e por todas as mais gentes que não estão acostumadas a semelhantes trabalhos”. (AHM, 1ª div. 14ª secção, cx 96, p. 95, ofício do governador de Mafra para Miguel Forjaz (*) , de 28 de Março de 1810, cit. por Clímaco (2010), p. 53.54). (*) D. Miguel Pereira Forjaz era 9º conde da Feira, secretário da regência de D. João VI, titular da pasta dos Negócios da Guerra e Estrangeiro.

TENDÊNCIAS DE PODERES ABSOLUTOS DOS INGLESES A COMEÇAR PELOS MILITARES DE WELLINGTON:

«Com Wellington há uma tentativa de pôr o poder político [português e inglês] na dependência do poder miltar [...]. Assim, vai pretender que o Estado e as estruturas do poder, bem como todos os recursos do país sejam disponibilizados e postos ao serviço dessa [...] Causa [...]. A sua intervenção ultrapassa os limites da esfera militar, nomeadamente quando prõem à regência a alteração do regime alfandegário [..]». "Quanto às operações militares [Soriano destaca as palavras de Wellington] "nem a regência nem algum outro corpo de estado se deve nelas intrometer e emiscuir [...] quando deva tomar tudo sobre mim e ser responsável por tudo, devo ter pleno poder, e de ninguém deverei receber ordens"».  (Cfr. Clímaco (2010), pp. 113-114 ; SORIANO, História da guerra e do estabelecimento do governo parlamentar em Portugal..., ob. cit. p.151)

ESTRATÉGIAS DE NACIONALISMO PERANTE AS AMEAÇAS E CHANTAGENS DOS INGLESES:

«Welington com o apoio do governo inglês, ameaça repetidamente, ao longo da sua estada em Portugal, abandonar o país e deixá-lo a braços com a invasão francesa. A resistência à presença inglesa começava a manifestar-se em todo o país, inclusive no seio da regência, se bem que esta continuasse a fornecer aos ingleses a maior colaboração [...] Nobres, magistrados e até mesmo os estratos mais baixos da sociedade opõem uma resistência passiva a Wellington, que se traduz por uma certa má vontade em obedecer às suas disposições, provocando atrasos na execução das ordens emanadas dos oficiais ingleses [que acabam por confundir os portugueses] por indolência [segundo a visão de Wellington] uma das formas de resistência do nacionalismo lusitano» (Clímaco (2010), p. 117. Cfr. Correspondência de Wellington para Charles Stwart, 16 Jan.1811 in Gurwood, Recueil choisi des dépêches et ordres du jour ... ob. cit. p. 483).

HAVIA EM PORTUGAL ADEPTOS DOS FRANCESES E DAS DOUTRINAS LIBERAIS E REVOLUCIONÁRIAS?

Sim. Repare-se apenas em alguns exemplos:

Marcos Portugal, (1762, Lisboa; 1830 Rio de Janeiro). Figura de proa, a nível internacional. Marcos Portugal compôs, dirigiu e interpretou músicas, durante o tempo da 1ª invasão, para os franceses, actuando na presença dos generais Lannes e Junot, chegando a ser apelidado de jacobino;

Bocage (1765, Setúbal; 1805, Lisboa): Mais intervencionista, pela escrita e presença em cafés, foi o poeta Manuel Maria Barbosa Du Bocage. Adepto das liberdades individuais. No seu primeiro volume de poesia cantou a liberdade e denunciou o despotismo. Acusado de pedreiro-livre, preso na cadeia do Limoeiro. Traduziu Rousseau (1712-1778) e Voltaire (1694-1778) em quem se influenciou para os ideais de liberdade. A consciência da necessidade de liberdades vem-lhe também pelo ambiente em que vive. No tempo em que a raínha D. Maria I elouquecera:

«[...]. No "Botequim das Parras", no "Café Nicola" e noutros lugares de encontro dos noctívagos lisboetas, Bocage foi rubricando críticas aceradas aos múltiplos problemas nacionais, ao despotismo de Pina Manique, ao ambiente de suspeição em que se vivia, à natureza do regime e à ausência dos direitos humanos mais elementares. [...] Compôs poemas de carácter satírico contemplando pessoas do regime, tipos sociais e o clero [...] Poemas como "Liberdade, onde estás?" [...]» (cf. "Exposição biobibliográfica comemorativa dos 230 e 190 anos do nascimento e morte de BOCAGE / Câmara Municipal de Setúbal, Daniel Pires. Setúbal: C.M.S., 1995). Veja também entrada acedida nas fontes de apoio acima: Bocage [poeta neo-clássico, arcádico, pré-romântico, pró-revolucionário e anticlerial].

Dom Pedro de Almeida, Marquês de Alorna. É votado a um “Decreto de Banimento” [...] que esquecido do seu nascimento, e das distintas Mercês, com que o mesmo senhor o havia honrado [...] achando-se empregado no atque contra estes Reinos, e tendo procurado pelos meios da força, e da sedução alienar os ânimos dos Fiéis Portugueses, afetando ser general Portuguez para melhor os iludir; espalhando proclamações sacrílegas, e destinadas a seduzir o Povo, e a Tropa, a quem convida ao serviço Francez, para levar a morrer desgraçadamente nas injustas guerras desta Potencia [...] manda o Principe Regente Nosso Senhor declarar o dito Pedro de Almeida Réo de Lesa Majestade de primeira cabeça [...] e procedendo o manda privar de todos os Titolos, Honras, e Dignidades, e até do nome Illustre Portuguez, de que se fez indigno: determina que se considere como banido, para que cada hum do Povo o possa matar sem crime, e oferece o premio de mil moedas de ouro a quem o apresentar vivo, ou morto [...].

Estas posições pró liberal e até pró bonapartistas não significam, à partida, falta de patriotismo; elas resultam das contradições do absolutismo e dos finais do Antigo Regime, bem como da intensa propaganda liberal que então chegava ao reino português, para lá da aqui elaborada. Por outro lado, não creio que as figuras pró liberais e pró bonapartistas tivessem, por exemplo, conhecimento dos preceitos, anti Portugal, patentes no tratado secreto de Fontainebleau entre a França bonapartista, associada à Espanha de Carlos IV contra o nosso país.

SIGNIFICADO DA RETIRADA E O QUE FICOU:

Foi o começo do fim do imperialismo francês. Ficaram ideias revolucionárias e um crescente sentimento anti "Antigo Regime", algo que haveria de levar à Revolução Liberal de 1820. Além de todas as misérias provocadas: dezenas de milhares de baixas, fomes, destruições, roubos, perda até ao presente, do território de Olivença houve, no decurso das três invasões, intercâmbios de relações forçadas e/ou consentidas entre militares franceses e mulheres portuguesas.
Em tempos conversei com o meu amigo marquês Arthur Lambert da Fonseca pertencente à antiga nobreza dos Coutinhos (Magriço, capitão dos Doze de Inglaterra), Fonsecas e Lambert. Lambert da Fonseca  confessou-me que o seu nome Lambert vem da sua mãe e que na origem está um oficial da altura das invasões francesas que se encontram por aqui, em Lisboa (Quinta do Lambert ao Campo Grande / Lumiar) e alguns elementos no Norte de Portugal. Na altura não lhe perguntei se esse seu ascendente era francês ou inglês, sendo que existem Lambert em França e em Inglaterra (2). Presumo, porém, pelo que conheci do Dr. Arthur Lambert da Fonseca, que é descendente, na parte materna, de um oficial inglês.

(2)cf.PINTO, ob. cit., p. 80; 117)

Outro nome, Jacques marido da professora e pintora Olinda Gil. A Prof. Olinda Gil crê que o marido é proveniente dos militares franceses, quando aqui estiveram;
E em 30.09.2015 vejo uma reportagem no jornal “i” onde o Engrº José Modesto Massena Gago se afirma descendente de Gago Coutinho da parte materna e do Marechal Massena da parte paterna.

Consta que o general Massena se «envolveu com uma nobre portuguesa [...] Teresa de Carvalho, condessa de Condeixa [...]. Quase dois séculos depois, em 2007, Massena Gago decide fazer uma visita ao tetravô, em Paris, e foi ao cemitério de Père Lachaise para ver a campa do seu familiar. É uma espécie de pirâmide. “A rua do cemitério é muito grande a até andam lá automóveis”, sublinha. [...] “Paris está cheio de ruas, paraças, liceus e  estátuas do Massena”, acrescenta [...]» (reportagem in “Memórias de um algarvio acidental. ´O meu tetravô invadiu Portugal`», jornal “i”, 30 Setembro 2015) 

De facto as invasões francesas são ainda um manancial de surpresas e de interesses. Deixo aqui apenas alguns exemplos, haverá muitos mais, até porque da primeira vez que os franceses entraram em Portugal permaneceram por cá com um Governo cerca de 8 meses, elaborando inclusivamente leis enquanto a corte portuguesa estava no Brasil.

Em conclusão: ao tempo da primeira invasão, os franceses já se consideravam donos, pelo menos de parte de Portugal, porém, as populações vêm paulatinamente ganhando consciência da dependência a que estavam a ser sujeitos, também face aos ingleses. Foi uma questão de tempo; esperar pelas oportunidades de luta e retoma da soberania.  Não foi fácil e as consequências estenderam-se pelas décadas seguintes.

Palavras-chaves: identidade, independência, Linhas de Torres, patriotismo

Fontes:

---JONES, John T. Memoires sur les Lignes de Torres Vedras élevées pour couvrir Lisbonne en 1810 […]. Paris: Anselin, 1832

---GOTTERI,  Nicole – La mission de Lagard policier de l´empereur pendant la guerre d`Espagne 1809-18102. Edition des depeches concernant la Peninsule Iberique. Paris: Publisud, 1991

---GURWOOD,  Colonel John - Recueil choisi des dépêches et ordres du jour de feld Maréchal duc Wellington. Bruxelles: Meline, Cans et Cie, 1843. Edição impressa disponível na BNP - Biblioteca nacional de Portugal.

---LIMA, major-general António Luís Pedroso de Lima, et. al - “Bicentenário do Corpo Telegráfico 1810-2010”. s.l.: Blueprint, Ldª, 2010.

---PINTO, Alexandre de Sousa, MONTEIRO, Miguel Corrêa (coord.), VENTURA, António, VICENTE, António Pedro. -  As Linhas de Torres Vedras: um sistema defensivo a norte de Lisboa. Torres Vedras: PILT, 2011

--- KOCH, General Jean Baptiste Fréderic - Mémoires de Masséna redigées d`après les documents qu`il a laissée et ceux du dépôt de la guerre et du dépôt des fortifications. Paris: Paulin et Lechavalier, 1848-1850

---PELET-CLOZEAU, general Jean Jacques Germain. Mémoires sur ma campagne du Portugal 1810-1811. Paris: Librairie

--- PELET-CLOZEAU,  general Jean Jacques Germain;  SCHNEIDER, Christian -; Mémoires sur ma campagne du Portugal (1810-1811).. Paris: Editions Historiques Teissèdre, 2003

---VENTURA, António - Memórias de Massena - Campanha de 1810-1811 em Portugal“. Lisboa: Livros Horizonte, 2007

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