quinta-feira, 30 de junho de 2016

70. DAS COMENDADEIRAS DE SANTOS AO REAL PALÁCIO E EMBAIXADA DE FRANÇA


Começo com um pensamento de origem francesa, ligado às comunicações e museologia social:
 
“Não há comunicações sem envolvimento […]
Vejo-te sentado no portal, tendo atrás de ti
a porta da tua casa […] separada do mundo,
que não passa do somatório de objetos vazios.
Porque tu não comunicas com os objetos,
mas com os laços que os ligam”.

(Antoine de Saint-Exupery (29.6.1900, Lyon ; +31.7.1944, Marseille) in Cidadela)
(Igreja e Palácio de Santos / Embaixada de França. Foto. Arq. AA)

Este pensamento de Saint-Exupery explica como os objetos são importantes desde que sirvam para interpretar e relacionar o mundo com os laços deenvolvimento. Sem estes laços, os objetos tornam-se vazios. É aqui que entra o palácio de Santos e os seus conteúdos, relacionados com as funções históricas e atuais. Palácio e igreja adjacente de Santos-o-Velho, que fizeram parte integrante, podem e devem explicar alguns dos mais importantes capítulos da História de Portugal.
O palácio de Santos é a atual sede da Embaixada de França em Lisboa. Situa-se na Calçada Marquês de Abrantes, a Santos-o-Velho, Bairro da Madragoa e faz parte da freguesia da Estrela.

(Frontão do palácio com escultura de pelicano alimentando os filhos. Foto Arq. AA)

O edifício da embaixada e igreja, estão relacionados com a história da cristandade, com os movimentos da reconquista, habitação de religiosas, palácio de monarcas e da nobreza ligada à família real.

Em 1147 com D. Afonso Henriques edifica-se sobre as ruinas visigóticas uma igreja dedicada aos santos mártires, perseguidos e mortos durante o domínio romano e em 1194, o rei D. Sancho faz a doação da igreja e das terras envolventes à Ordem de Santiago de Espada. Porém, com o avanço da Reconquista, os Cavaleiros da Ordem de Santiago avançam para sul e o convento de Santos fica a cargo e usufruto das suas viúvas e filhas. A estas mulheres foi-lhes concedido o título de comendadeiras.

Cerca de 1490 - O feitor da Casa da Mina e da Índia, Fernão Lourenço, aluga, em primeira instância, o palácio e reestrutura o lugar.

Quanto ao convento, do ponto de vista físico, faziam parte a igreja e os edifícios contíguos, incluindo o da atual embaixada de França. As comendadeiras deixam de funcionar no sítio da Madragoa e mudam-se para junto da ermida de Nª Srª do Paraíso num lugar situado entre o convento de Santa Clara e Xabregas. Aí é o primeiro convento de Santos-o-Novo; enquanto o convento, cujo edifício prevalece na zona do cais da Pedra, a seguir a Santa Apolónia (ao fundo da Av. Mouzinho de Albuquerque) deveria ser chamado Santos-o-Novo-o-Novo, porque corresponde à terceira e última morada das comendadeiras de Santos.

Quanto à zona do primeiro convento das comendadeiras passa a chamar-se Santos-o-Velho. Esta mudança permite que o primeiro edifício mude de função de convento para palácio real. Embora estando a cargo do referido Fernão Lourenço, D. Manuel I passa a utilizá-lo. Este Fernão Lourenço era armador e banqueiro, um dos principais financiadores dos empreendimentos da Coroa, sobretudo os ligados à expansão e aos negócios e produtos provenientes das novas geografias de além-mar.

O rei venturoso utiliza o palácio para as cerimónias do seu casamento com Dona Isabel, filha dos Reis Católicos. Aqui o monarca encontra outra tranquilidade que o palácio da Ribeira já não proporciona, incluindo uma vista magnífica para a praia de Santos e para o rio.

Embora o palácio continue as ser propriedade das comendadeiras, alugado pelo referido burguês, Fernão Lourenço, presume-se que é subalugado pelo Rei D. Manuel. Nesta altura entra em obras e decoração. É aqui que tem intervenção o célebre arquiteto e escultor João de Castilho, também autor no palácio real da Ribeira, nos mosteiros dos Jerónimos, Batalha e ainda no convento de Tomar.

Do ponto de vista cultural, sabe-se que Gil Vicente apresenta neste palácio alguns dos seus autos.

D. João III não nutre grande carinho pelo palácio, talvez por aqui ter sofrido um acidente. Ao contrário, D. Sebastião utiliza-o como residência predileta.
Alcácer Quibir determina um período de abandono do palácio que acaba por ser adquirido em 1629 por Francisco Luís de Lancastre, um descendente de D. João II (fora do casamento) que herda o título de marquês de Abrantes; daí o nome da via que passa pelo palácio se chamar Calçada Marquês de Abrantes.

D. Pedro de Lancastre da Silveira de Castelo-Branco Sá e Menezes é o 5º marquês de Abrantes. Nasce em Santos-oVelho, em 1762, e aqui falece em 1828. É portanto um alfacinha de gema e um madragoense.

No século XIX o palácio volta a ser residência de famílias reais. De 1841 a 1849 é habitado pela duquesa de Bragança, viúva de D. Pedro I do Brasil, e em 1853 também se instala aqui, numa parte do palácio, uma irmã dos reis D. Pedro e D. Miguel e seu marido, o marquês de Loulé.

Em 1870, falece o 10º conde de Vila Nova de Portimão, D. José Maria da Piedade de Lancastre e Távora (1819, +1870) e é nesta altura que a maior área do palácio passa, na titularidade de aluguer, para o ministro francês, o condeArmand, que o utiliza nos negócios e relações oficiais com a França.  

Em 1880, o último e 8.° marquês de Abrantes, D. João Maria da Piedade de Lancastre e Távora (1864-1917) ainda habita parte do edifício. Estava prestes a acontecer a Revolução Republicana do 5 de Outubro de 1910 que acaba com os títulos de nobreza; porém, um ano antes, em 1909, o governo francês antecipa-se, comprando efetivamente o palácio, através do ministro, Saint-René Taillandier.
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Remodelado pela vicissitude dos tempos, o exterior é simples; apresenta uma fachada com parcos elementos decorativos, cujos traços remetem para um neobarroco e neoclássico. Tudo parece indicar que estes elementos já são datados do século XIX, quando se fizeram obras de consolidação e reconstrução. Sob uma janela encontra-se representado o pelicano e suas crias; esta imagem é adotada como um atributo da família Lancastre que, por sua vez, reinterpreta um sinal cristão representando uma exaltação da caridade; sendo que esta ave é capaz de se ferir a si própria para, com o sangue, alimentar as suas crias.
As armas dos Lancastre encontram-se esculpidas no frontão superior.
 
A capela é beneficiada com telas de Marcos da Cruz que presumo ser o pintor cujo estilo está entre o tardo maneirista e o proto barroco. Por ser um lugar de culto, mais sensível à tradição, ainda preserva azulejaria do século XVI. Será, pois nesta capela que se poderá admirar o que é mais antigo. Mandada construir por José Luís de Lancastre e pela sua mulher, Filipa de Vilhena, por isso os brasões das duas famílias ali se encontram.

Consta que o rei O Encoberto em 1578 toma a sua última refeição na mesa de pedra que se encontra no jardim, justamente antes de partir para a infeliz empresa de Alcácer Quibir. Também assistiu a uma missa na igreja adjacente ao palácio de Santos-o-Velho.

Francisco Luís de Lancastre, 3º comendador-mor da Ordem de Avis adquire o palácio às comendadeiras nos finais da segunda década de 1600`. A partir desta data é que fica na posse efetiva dos Lancastre até 1909.

Em 1704 são conhecidas as riquezas do palácio quando morre Luís de Lencastre e se faz um inventário onde constam as coleções de porcelanas da China, sedas e brocados de ouro do oriente, pratas, tapeçarias e obras de pinturas. Em relação às porcelanas da China ainda conserva uma coleção de peças.

Cerca de 1710 recebe novas obras de arquitetura, a cargo de João Antunes.  (1)
 
A ligação dos Lancastres aos marqueses de Abrantes parece vir de meados do século XVIII (1742) quando D. Pedro de Lancastre, 5º conde de Vila Nova de Portimão, casa com a filha do 2º marquês de Abrantes. Este D. Pedro de Lancastre ao herdar o palácio proporciona também a remodelação da Igreja de Santos, ao que tudo parece, ampliando-a e junta-lhe o adro, cerca do ano 1752.

Pedro Alexandrino de Carvalho e Francisco Pais vão fazer nova decoração no interior do palácio. A Sala de Música é uma das mais decoradas.
(Sala da Música da Embaixada de França. Foto do jornal Público / Dário Cruz, em linha, 27.01.2012)
 
Em 1808 é ocupado pelas tropas francesas comandadas pelo general Junot.
Consta que antes de meados do século, a viúva de D. Pedro IV, D. Amélia de Leuchtenberg, duquesa de Bragança, se instala neste lugar, onde terá vivido alguns anos antes de se transferir para o palácio das Janelas Verdes (atual Museu de Arte Antiga). No entanto, no dobrar de meados do século XIX os marqueses de Abrantes continuam a morar aqui. 

É na década de 70 do século XIX que D. João de Lancastre e Távora arrenda o palácio ao conde Armand, embaixador de França. Em 1909 o velho palácio, com tanta história e algumas vezes remodelado, é efetivamente adquirido pelo governo francês que, além de comprar o antigo palácio, ainda constrói, em 1937, o edifício ao lado para funcionar como Instituto Francês.

No século XX são feitas remodelações nomeadamente pelos arquitetos Andrade (Carlos e Guilherme) e por Gonçalo Nuno de Sousa Byrne.

Conclui-se que Santos-o-Velho, a Madragoa, a História de Portugal e as relações com a França estão aqui associadas. Quanto aos Lancastres cuja relação vem do tempo do pai e da raínha D. Filipa de Lencastre, mãe da Ínclita Geração; esta nobreza foi continuada pelos elementos da família que viveram em Santos-o-Velho quase 300 anos, procederam a importantes obras arquitetónicas e decorativas e deixaram marcas na toponímia local.
(Luso Embaixador de França em Portugal - Dr. Pascal Teixeira da Silva condecorado pelo Presidente da República)
(Jardim do palácio em festa. Foto République Française ... / Embaixada de França)
…………………………….
Nota:
(1)João Antunes (1643-1712) arquiteto da Corte e Igreja, cujo traço era essencialmente barroco com influência de Barromini.  É dele o risco da Igreja de Santa Engrácia, Igreja do Menino Deus, Igreja do Bom Jesus de Barcelos, Túmulo de Santa Joana Princesa, em Aveiro, entre várias outras obras.

Fontes:
-Silva, Pascal Teixeira da, Embaixador de França em Portugal – Visita Guiada O Palácio de Santos, documento, gentileza da Embaixada de França, s. d.
Em linha -
-Anciães, Alfredo Ramos - 69. Madragoa Santos e Envolvências inhttp://museologiaporto.ning.com/profiles/blogs/69-madragoa-santos-e-envolv-ncias
-Andrade, Ana Lourenço Pinto et al -  Vida e obra dos Arquitetos Guilherme e Carlos Rebelo de Andradein https://www.facebook.com/Vida-e-Obra-dos-Arquitectos-Guilherme-e-Carlos-Rebelo-de-Andrade-463830543671790/
-Diário de Notícias; Coelho, Hugo Filipe - Novo embaixador francês em Lisboa é um lusodescendentein http://www.dn.pt/portugal/interior/novo-embaixador-frances-em-lisboa-e-um-lusodescendente-1635165.html
-Diário de Notícias; Figuieiredo, Leonor – Palácio de Santos inhttp://www.dn.pt/arquivo/2007/interior/franca-da-3-milhoes-ao-palacio-de-santos-989545.html  
-Evangelho Quotidiano, et al. - Santos Mártires de Lisboa inhttp://evangelhoquotidiano.org/main.php?language=PT&module=saintfeast&id=11618&fd=0
-Portugal Monumentos IPA Palácio do Marquês de Abrantes / Embaixada de França inhttp://www.monumentos.pt/Site/APP_PagesUser/SIPA.aspx?id=5048
-Moisão, Cristina - Santos-o-Velho - Período Romano: Histórias e lendas inhttp://lisboaantiga.blogspot.pt/2012/11/santos-o-velho-periodo-romano-historias.html
-Molinari, Carlos Armando - Pelicano símbolo maçónico in http://www.masonic.com.br/trabalho/pelicano.htm
-Público; Canelas, Lucinda (texto); Cruz, Dário (fotos) - O embaixador de Paris é um conservador de património em Lisboa in http://www.publico.pt/temas/jornal/o-embaixador-de-paris-e-um-conservador-de-patrimonio-em-lisboa-23861634
------------Canelas, Lucinda (texto); Cruz, Dário (fotos) - Uma colecção de pratos “única” e “global” muda de casa por uns tempos in https://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/uma-coleccao-de-pratos-unica-e-global-muda-de-casa-por-uns-tempos-1685040
------------ Canelas, Lucinda Canelas (texto); Dário Cruz (fotografia) - O embaixador de Paris é um conservador de património em Lisboa  in https://www.publico.pt/temas/jornal/o-embaixador-de-paris-e-um-conservador-de-patrimonio-em-lisboa-23861634
-République Française et al. – Ministère des Affaires Étrangères et du Dévelopement International -Fim da missão em Portugal do Embaixador Pascal Teixeira da Silva (12.09.2013) in http://www.ambafrance-pt.org/Fim-da-missao-em-Portugal-do
--------------Jornadas Europeias do Património na Embaixada (26-27.09.2015) inhttp://www.ambafrance-pt.org/Jornadas-Europeias-do-Patrimonio-na-Embaixada-26-27-09-2015
--------------Recepção oficial por ocasião da conclusão das obras do Palácio de Santos inhttp://www.ambafrance-pt.org/Nouvelle-traduction-Reception-officielle-des-travaux-des-toitures-du-palais-de
--------------Recepção da festa nacional francesa a 14 de Julho de 2015 in http://www.ambafrance-pt.org/Recepcao-da-festa-nacional-francesa-a-14-de-Julho-de-2015
---------------Palácio de Santos – in http://www.ambafrance-pt.org/-O-palacio-Dos-Santos-   
-Wiki et al
-------------Angelo Maria Crivelli (pintor animalista italiano, 17--? – + 1760?), inhttps://it.wikipedia.org/wiki/Angelo_Maria_Crivelli
-------------Casa de Abrantes in https://pt.wikipedia.org/wiki/Casa_de_Abrantes  
-------------D. João Maria da Piedade de Lancastre e Távora, 8.° e último marquês de Abrantes, 11.°conde de Vila Nova de Portimão e 15.° conde de Penaguião in  https://pt.wikipedia.org/wiki/Jo%C3%A3o_Maria_da_Piedade_de_Lancastre_e_T%C3%A1vora   
-------------D. José Maria da Piedade de Lancastre e Távora (1819–1870) - Lista dos condes de Vila Nova de Portimão in https://pt.wikipedia.org/wiki/Conde_de_Vila_Nova_de_Portim%C3%A3o
-------------João Antunes (1643, +1712, arquiteto da Corte) inhttps://pt.wikipedia.org/wiki/João_Antunes 
-------------João Antunes (arquiteto) in https://pt.wikipedia.org/wiki/Jo%C3%A3o_Antunes
-------------Pedro Alexandrino de Carvalho (pintor entre o Barroco, Rococó e o Neoclássico; Lisboa: 27 de novembro de 1729; +27 de janeiro de 1810)https://pt.wikipedia.org/wiki/Pedro_Alexandrino_de_Carvalho
------------Gonçalo Nuno de Sousa Byrne in https://pt.wikipedia.org/wiki/Gon%C3%A7alo_Byrne
-------------Marcos da Cruz (pintor 1610, Lisboa +1683) in
-------------Marcos Cruz ou Marcos da Cruz (pintor 1610, Lisboa +1683) inhttps://pt.wikipedia.org/wiki/Marcos_da_Cruz
-------------Pelicano - símbolo eucarístico in https://pt.wikipedia.org/wiki/Pelicano_Eucar%C3%ADstico
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