61. DA ROMANIDADE À ATUALIDADE: UM PERCURSO
Da Igreja de São João do Lumiar ao coração de Lisboa, passando por Odivelas, Caneças, Belas e Carenque procurando uma interpretação dos patrimónios, imateriais e tangíveis, relacionados com a água.
MOMENTO I - A Força da água na vida espiritual e corporal
A Igreja de São João do Lumiar fica situada no Largo São João Baptista, 1600-760 Lumiar - LISBOA. Esta Igreja tem dois oragos: São João Batista e Santa Brízida ou Brígida. Ambos os oragos estão relacionados com a água, daí o iniciar este percurso na Igreja e Largo em referência.
Imagem 01. Altar de São João Batista no Lumiar com 8 degraus
Uma das descrições de S. João Batista, primo de Jesus Cristo. É «Aquele que batiza em água», sendo que S. João batizou o próprio Cristo nas águas do Rio Jordão.
Algumas citações sobre São João Batista:
No Evangelho de São Mateus: 3,11 Eu [João Batista] batizo-vos em água para vos mover ao arrependimento; mas Aquele que vem depois de mim é mais poderoso do que eu e não sou digno de Lhe levar as sandálias. Ele [Jesus Cristo] batizar-vos-á com o fogo do Espírito Santo.
Imagem 02. Fachada com frontão superior. Barroco tardio, de inspiração borromínica, talvez do arquiteto português Mateus Vicente de Oliveira ou algum dos seus colaboradores
Em São Lucas: 3,16 - João [Batista] disse-lhes a todos: «Eu batizo-vos em água, mas vai chegar Quem é mais poderoso do que eu, Alguém cujas correias das sandálias não sou digno de desatar. Batizar-vos-á no Espírito Santo e no fogo».
Em São João [o Evangelista]: 1,26 - João [Batista] respondeu-lhes: «Eu batizo em água; mas, no meio de vós, encontra-se Alguém que não conheceis; 1,27 - Aquele que vem depois de mim; e eu não sou digno de desatar a correia da Sua sandália». 1,28 - Isto passou-se em Betânia, do outro lado do Jordão, onde João estava a baptizar. 1,33 - E eu não O conhecia [refere-se a Jesus Cristo], mas Aquele que me enviou a batizar em água, é que me disse: «Aquele sobre Quem vires o Espírito descer e permanecer é que batiza no Espírito Santo.
Em São Marcos: 1,8 - «Eu [João Batista] batizarei em água, mas Ele batizar-vos-á no Espírito Santo».
Nos Atos dos Apóstolos: 1,5 - «Porquanto João [Batista], batizava em água, mas dentro de pouco tempo, vós sereis baptizados no Espírito Santo».
Na reconstrução desta Igreja entram vestígios manuelinos mas pode classificar-se mais propriamente nos estilos maneirista e barroco. Antes da reconstrução já existia outro templo, pois encontram-se ali encastradas e legendadas as três sepulturas referentes aos cavaleiros Hibérnios (da atual Irlanda) que, segundo a tradição e algumas fontes, trouxeram, no tempo de D. Dinis, a relíquia de Santa Brízida, destinada ao mosteiro de Odivelas. Porém, e milagrosamente, segundo algumas descrições e a lenda popular, a relíquia preferiu ficar no Lumiar, estando os restos depositados na igreja local.
Sendo este templo votado, em especial, a São João Batista, a sua imagem encontra-se ali num altar com 8 degraus. O número 8 está ali velado nos 8 degraus. Não será por acaso. O próprio padre João Caniço, numa entrevista in loco, respondendo à minha questão sobre o significado revelou-me tratar-se efetivamente duma referência à Maçonaria, pois esta Organização tem o número 8 como um dos mais simbólicos e tem ainda São João Batista em particular devoção.
Imagem 03. Santa Brígida com alguns dos elementos que mais a caraterizam: água regulada e abençoada. O quadro apresenta ainda alguns animais domésticos - um cordeiro e dois bovinos, associados popular e tradicionalmente à proteção da santa
Santa Brízida ou Brígida
Também de importância particular no universo da cultura céltica é Santa Brízida que, segundo algumas interpretações, terá sido uma antiga deusa pagã convertida ao cristianismo e tornada santa. Há ali, na igreja do Lumiar, vários patrimónios, materiais e imateriais, associados a esta santa, internacionalmente venerada no Lumiar. A relação da santa com São João Batista e com a água não é despropositada:
Primeiro -
Ambos são venerados no Lumiar. A João Batista foi-lhe cortada a cabeça, bem como à Santa Brízida. A cabeça desta Santa ficou, milagrosamente no Lumiar quando os três cavaleiros hibérnios (também sepultados na igreja) a trouxeram para Portugal no ano de 1283, reinando D. Dinis.
Imagem 04. 3ª sepultura dos cavaleiros hibérnios que trouxeram a relíquia de Santa Brízida oferecida a Portugal através dos reis D. Dinis e Santa Isabel
Legenda na sepultura:
«AQUI NESTAS TRES SEPVLTURAS IAZÊ[M] ENTERADOS OS TRES CAVAL.ros / IBERNIOS Q[UE] TOVXERÃ[M] A CABECA DA B~E[M] AV~[E]NTURADA S. BRIZIDA VIR / G~E[M] NATVRAL DIBERNIA CUIA RELIQVIA ESTA NESTA CAPELA P[AR]A MEMO / RIA DO QVAL HOS OFICIAIS DA MESA DA B~E[M] AVENTURADA S. MÃODA / RÃO FAZER ESTE E~[M] IAN[EI]RO DE 1283»
Segundo –
Santa Brízida é protetora do mundo rural, não só dos animais, como dos pastores, do sol e do fogo; associada também à luz, à água e à fertilidade. Durante vários séculos, no Lumiar e em Telheiras do termo da freguesia do Lumiar, se fizeram romarias com gado e procissões a pedir proteção e chuva.
Invoca-se Santa Brígida, nomeadamente para que não falte água. A imagem pictórica de Santa Brígida tem junto a si dois recipientes, o inferior virado para a Terra, representará a distribuição de água e o recipiente superior está virado para o Céu, de onde vêm as graças concedidas pelo Altíssimo.
MOMENTO II - Caneças
Imagem 05. do Brasão de Caneças
Com imagem de um cântaro no escudo de armas e bandeira da vila, o emblema de Caneças é constituído pela iconografia relativa à presença de água. Uma bilha vermelha representa a água, o barro e a vida, envolvido com ramos de hera cuja planta está associada à simbologia da imortalidade e à força da vida vegetal.
Das cinco fontes que conhecemos em Caneças, apenas incluímos aqui a denominada “Fontainhas”. Por sinal é uma das que apresenta menos decoração, mas é a que está mais acessível ao público e tem significado para a cidade de Lisboa. Do lado oposto, apenas separado pela estrada, está situado o tanque das lavadeiras, tão conhecidas na capital, inclusivamente pela voz de Amália Rodrigues.
Imagem 06. Fonte das Fontaínhas
«Dos fregueses a conduta / é pela roupa que se prova. / Mas lavada e bem enxuta / até fica como nova. Com Lisboa sem vaidade / a saloia pede meças. / Há mais burros na cidade / do que há burros em Caneças! […]». Extrato “As Lavadeiras de Caneças” na revista a Rambóia, 1928. inhttp://jepleuresansraison.com/2009/12/23/amalia-1967-as-lavadeiras-de-canecas/
Imagem 07. Aguadeiro junto à Fonte das Fontainhas
Na decoração do acesso às Fontainhas podemos encontrar várias imagens bidimensionais em nichos nas paredes, representando as cenas do fornecimento de água, produtos, transportes e animação relacionados com Lisboa. Estas imagens iconográficas revelam valor etnográfico, respeitante à primeira metade do século XX.
Imagem 08. Lavadeiras junto à Fonte das Fontainhas
MOMENTO III – Vestígios da barragem romana e da Águas Livres
Por aqui se encontram edifícios e aquedutos que vão juntar-se a outros da parte ocidental de Caneças, Olival Santíssimo e outros ainda a jusante, seguindo quase paralelos à ribeira no sopé de Caneças, Casal e Serra da Silveira. Mais adiante estas nascentes e ribeira tomam o nome de Ribeira de Carenque.
Imagem 09. Vestígios da barragem romana ao lado de estruturas das Águas Livres do séc. XVIII
Junto à estrada EN250, encontram-se os restos arqueológicos da barragem romana. Construída há cerca de 1750 anos, no século III, e cerca de 1500 antes das obras denominadas Águas Livres.
Ambas as estruturas, romanas e das Águas Livres, foram executadas para o fornecimento de água a Lisboa. Na altura da barragem o acesso do caudal à capital seria feito por Santo André, junto à Graça evitando, assim, a obra quase faraónica do aqueduto das Águas Livres em Alcântara. Contudo a barragem romana constituía uma inovação até mesmo em relação às Águas Livres do século XVIII/XIX pois o reservatório em barragem garantiria um caudal regular entre as várias épocas do ano.
Imagem 10. Bacia da antiga barragem romana
Os vestígios da barragem romana encontram-se classificados como Imóvel de Interesse Público. Para lá desta classificação existe uma proposta da CM Sintra a fim de incluir na classificação os terrenos outrora abrangidos pela barragem. Consta que várias estruturas do aqueduto das Águas Livres estão sobrepostas às antigas fundações romanas que seguiam o mesmo percurso ou muito próximo.
Imagem 11. Águas Livres, século XVIII – no envolvimento da antiga barragem romana
Na realidade encontrei vários pontos dos aquedutos onde a edificação é bem discernível, entre uma camada superior e outra inferior, como se de duas fases bem distintas no tempo e na técnica se tratasse. Contudo não tenho a certeza se a camada inferior é efetivamente romana. De qualquer modo, a estrutura executada no século XVIII terá aproveitado muitos materiais líticos e partes do aqueduto romano que seguia de perto a ribeira de Belas, Carenque e Amadora.
Imagem 12. Aqueduto de Alcântara. Visita guiada com o Grupo dos Amigos do Museu das Comunicações
Tags: Águas Livres, barragem romana, Belas, Caneças, Carenque, Lisboa, Lumiar, património imaterial, património tangível, Santa Brízida ou Brígida, São João Batista.
Fontes:
-Anciães, Alfredo Ramos; Janeira, Ana Luisa et al. Lisboa Entre Águas e Manufacturas. Lisboa: CML, iniciativa do Departamento do Património Cultural, colaboração de Marcas das Ciências e das Técnicas por altura do Dia Internacional dos Monumentos e Sítios.- Resumo in Agenda Cultural de Lisboa, Abril, 20o9
-Bíblia Sagrada – Lisboa: Difusora Bíblica (Missionários Capuchinhos), 1984
-Fernandes, Júlio Cortez – Notas de aulas de Património Local em Universidade Sénior de Massamá e Monte Abraão, 2015/2015
-Nunes, Gabriela - Lisboa guarda segredos milenares. Santa Brígida, uma deusa céltica no Lumiar. Lisboa: Apenas Livros, 2011
Em linha--»
-Anciães, Alfredo Ramos - Pelos Trilhos do Conhecimento: Lisboa Entre patrimónios e Águas Livres http://comunidade.sol.pt/blogs/alfredoramosanciaes/archive/2009/03/20/PELOS-TRILHOS-DO-CONHECIMENTO_3A00_-LISBOA-ENTRE-PATRIM_D300_NIOS-E-_C100_GUAS-LIVRES.aspx
-Guedes, Gustavo - Significado dos símbolos http://www.significadodossimbolos.com.br/busca.do?simbolo=Hera
-Junta de Freguesia de Caneças - Vila de Caneças, brasão de armas e bandeirahttp://www.ahbvc.pt/Canecas.htm ; http://www.ahbvc.pt/Canecas.htm
-Portal de Portugal / Wikimedia – Caneças https://pt.wikipedia.org/wiki/Cane%C3%A7as
-Rodrigues, Amália (intérprete); Magalhães, Xavier de (letra); Freitas, Frederico de (música) - “As Lavadeiras [de Caneças]” . Executada inclusivamente no Olympia de Paris in http://jepleuresansraison.com/2009/12/23/amalia-1967-as-lavadeiras-... ; https://www.youtube.com/watch?v=9KNQWlVuSvY. Veja tambémhttp://aofundodaminharua1.blogspot.pt/2013/12/lavadeiras-de-canecas... ; http://porbase.bnportugal.pt/ipac20/ipac.jsp?session=1NO12801Y5069....enu=search&ri=1&source=~!bnp&term=Freitas%2C+Alice%2C+c...
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