Faz agora uma capicua de 101 anos em que a pneumónica surgiu como limitador da saúde pública e do desenvolvimento social.
Comparando com a situação actual, não é para ficarmos em pânico mas para termos respeito e cuidados; também uma assinalada esperança, pois as condições da ciência; a evolução técnica, económica, política e social são diferentes, entre o que se passou há um século e o presente.
Peça de contexto: Telégrafo da época. Impressão alfanumérica em fita de papel nas linhas de maior tráfego; contudo os telégrafos morse ainda eram a realidade maior da comunicação à distância, em todo o território nacional. Peça da Fundação Portuguesa das Comunicações / Museu.
Não cura e é sandice olvidar diretivas e informação, inclusivamente a lição histórica. A falta de conhecimentos das pestes, ou a sua desvalorização prejudica a prevenção. Repare-se nos resumos que a seguir deixamos, sobre a pneumónica de há 101 anos. Estes documentos foram apenas publicados em 2001 e 2015 e a promoção da sua divulgação foi notadamente escassa.
Peça de contexto: Telefone da época com manivela de gerador eléctrico para chamar o destinatário ou a estação intermédia. Este meio de telecomunicação funcionava apenas entre uma certa burguesia. Peça gentileza da Fundação Portuguesa das Comunicações / Museu.
Contudo, deixamos aqui o nosso muito obrigado aos Srs. Álvaro Sequeira,
Luís Trindade e ao professor de História Contemporânea Fernando Rosas.
“Os maiores protagonistas deste drama
acabaram silenciosamente. Talvez por isso a historiografia decida homenageá-los
de forma igualmente silenciosa, ignorando a maior
mortalidade portuguesa ao longo do século XX”.».
Esta
frase
de Luís Trindade, citada por
Álvaro Sequeira (os sublinhados são nossos) é reveladora de quanto silêncio e
desvalorização do conhecimento das epidemias, tendo deixado a noção de que as
grandes pestes eram coisas do passado e sem preocupação de maior. Logo, nasceu
daqui, uma certa arrogância e despreocupação quanto a possíveis e novas
infestações.
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«A pneumónica,
ou gripe espanhola, matou dezenas de milhares de pessoas nos anos de 1918 e 1919. Foi a
maior pandemia mundial conhecida até hoje causando mais mortes que a Peste
Negra ao longo de vários séculos ou a I Guerra Mundial.
Os estudos mais recentes apontam para a morte de
cinquenta a cem milhões de pessoas em todo o mundo, como resultado da pandemia
de gripe que durante dois anos lavrou pelos diversos continentes.
Em Portugal a Pneumónica ou Gripe Espanhola,
chegou a meados de 1918 e, em cerca de dois anos, dizimou dezenas de milhares
de pessoas. Algumas zonas do país perderam 10 por cento da sua população.
O combate à doença, liderado por
Ricardo Jorge, então diretor geral da saúde, passou pelo encerramento de
escolas, a proibição de feiras e romarias. Para assistir os doentes
foram requisitados dezenas de espaços públicos que passaram a funcionar com
enfermarias, mas o número de vítimas era tão grande que ao longo de várias
semanas se viveu uma situação de caos.»
· Título deste documento: História
- Gripe pneumónica, a pandemia de 1918-1919
· Tipo: Documentário
· Autoria: Fernando Rosas
· Produção: RTP/ Garden Filmes
· Ano da edição: 2015
&&&
«No
resto do mundo a pandemia causa perturbações semelhantes. Os relatos parecem
cópias uns dos outros. Sabe-se pouco do que se passou na China e na Índia, onde
parece que morreram mais de 20.000.000 de pessoas. Nos Estados Unidos são
referidos 500.000 mortos. O Comando do Corpo Expedicionário Americano em França
tinha pedido reforços e o governo americano convoca milhares de jovens de todo
o país que, para serem inspecionados, se mobilizam de uns lugares para outros,
em plena segunda onda, contribuindo assim para a disseminação da epidemia e
para uma maior mortalidade, que como é sabido afetava particularmente os
jovens.
No
Brasil o jornal a Razão do Rio de Janeiro (que ataca ferozmente o governo)
contabiliza 11.373 óbitos entre os dias 15 e 31 de Outubro, o Presidente da
República eleito, Rodrigues Alves morre, é anulado o Campeonato de Futebol
Sul-Americano e o Congresso Médico Internacional foi interrompido.
Este
país, que tinha entrado na guerra ao lado dos aliados, mobilizou uma esquadra
para combater os submarinos alemães. Esta atravessa o Atlântico e aporta em
Dakar nos fins de Julho, onde as tripulações são dizimadas pela gripe. São
treinadas novas tripulações e a esquadra só chega à sua base em Gibraltar no
dia do armistício (11 Novembro de 1918).
Calcula-se
que mais de 40.000.000 de pessoas morreram com a epidemia de 1918. Portugal,
com uma pequena população de 5.500.000, que desde os fins do século XIX até
1910 tinha visto a sua população aumentar a um ritmo razoável, a partir desse
ano viu o seu crescimento diminuir, devido não só ao número elevado de
emigrantes, mas também às múltiplas epidemias de tifo, febre tifóide e de
varíola, culminando com a mortalidade de 1918.
Seguindo
a Estatística do Movimento Fisiológico da População Portuguesa de 1918, verifica-se
que foram classificados 55.780 casos de óbitos com o diagnóstico de gripe,
sendo de 54.394 o número de casos dos últimos seis meses, longe portanto dos
cerca de 100.000 óbitos habitualmente referidos.
Contudo
se analisarmos os números das doenças ignoradas ou mal definidas verificamos
que estes sobem dos 4.500 casos de média mensal para 18.801 em Outubro e 13.713
em Novembro, num total de 42.505 nos últimos seis meses, o que dá um total de
97.627. Se somarmos a estes números 3.039 casos da terceira onda em 1919 e um
número proporcional de doenças mal definidas, facilmente se ultrapassa os
100.000 mortos.
Note-se
que na altura, muitas vezes a certidão de óbito era passado pela autoridade
administrativa por falta de médicos limitando-se esta a certificar que a morte
era de “causa natural”. Olhando ainda o Movimento Fisiológico de 1918 verifica-se
que 55% dos óbitos tanto com o diagnóstico de gripe ou de doença desconhecida
correspondem a indivíduos com idade entre os quinze e os trinta e nove anos.
Algumas personalidades com relevo na sociedade portuguesa, como os
pintores Amadeu de Sousa Cardoso e Guilherme Santa
Rita, o maestro David de Sousa, o músico António Fragoso e o vidente de Fátima,
Francisco, foram vítimas da epidemia. Por
todo o mundo jovens esperanças em todos os ramos do saber foram ceifados.
Apolinaire, o poeta francês, gravemente ferido em combate acabou por morrer
vitimado pela gripe.
Em
Portugal a pneumónica levou a uma crise demográfica grave: um saldo fisiológico
negativo em 1918 (menos 70.291) e um saldo fisiológico mínimo de 13.000 em
1919. Só a partir de 1920 o país reencontra o ritmo de crescimento adequado. No
aspecto político o país continuava a viver intensamente. O Presidente da República, Sidónio Pais,
odiado por alguns e idolatrado por outros, visitava os hospitais e os orfanatos
deixando esmolas.
Entretanto
o país vivia o desfecho da guerra, a crise económica e as movimentações
operárias. A
situação difícil no Parlamento (cenas de pugilato no hemiciclo) culminam com o
assassinato do Presidente a 14 de Dezembro. Pela leitura da imprensa
fica a ideia de que a nação se preocupava mais com os acontecimentos descritos
do que com um mero vírus que em poucos meses tinha ceifado “só” cerca de cem
mil portugueses...
A primeira conclusão é a de que a gripe 1918 (para os portugueses a
“pneumónica”) foi, em termos de mortalidade, a maior tragédia do século XX e
possivelmente de toda a nossa história, e uma das pandemias mais mortíferas na
história da humanidade. A virulência extrema do agente, a sua
disseminação facilitada pela mobilização de grandes massas de população devido
à guerra e a maior mortalidade entre os jovens adultos, são evidentes na
evolução do processo.
O défice
demográfico, as famílias desfeitas, as perturbações sociais, e até os conflitos
políticos, foram fortemente influenciados pela “pneumónica”. A tecnologia
moderna, que permitiu o estudo de algumas proteínas do vírus e as suas origens
filogenéticas, trouxe à ribalta a “spanish lady” e veio somar aos novos medos
causados pelos novos vírus, pelas doenças dos priões e outras emergentes, o
fantasma duma possível epidemia com as características de 1918 contra a qual,
apesar do progresso alucinante da medicina no século XX, os serviços de saúde
encontrariam ainda grandes dificuldades de resposta.
A vacinação é impossível de fazer em massa, e as epidemias […
bem como] o triunfalismo da medicina, mostraram bem como a humanidade ainda
está mal preparada contra a gripe.»
Encerramos
com as palavras de Luís Trindade (artigo citado):
«“Os maiores protagonistas deste drama acabaram silenciosamente. Talvez por isso a historiografia decida homenageá-los de forma igualmente silenciosa, ignorando a maior mortalidade portuguesa ao longo do século XX”.»
«“Os maiores protagonistas deste drama acabaram silenciosamente. Talvez por isso a historiografia decida homenageá-los de forma igualmente silenciosa, ignorando a maior mortalidade portuguesa ao longo do século XX”.»
A
divulgação da informação é, pois, fundamental para a mitigação dos danos
provocados por um inimigo invisível. Porque é preciso combater com cuidados,
saberes e reconhecimento dos promotores das ações profiláticas e de quantos, de
alguma forma, convergem para a saúde pública.
(Cf.
SEQUEIRA, Álvaro - Chefe de Serviço dos HCL, aposentado) - História da
Medicina. A Pneumónica. Lisboa, 2001 (Medicina
Interna Vol. 8, N. 1). Também disponível IN https://www.spmi.pt/revista/vol08/ch7_v8n1jan2001.pdf )
Outra Bibliografia consultada, nomeadamente
pelo autor Álvaro Sequeira:
Amaral
Marques R. A bordagem Clínica da Gripe, Pathos, N º 9 Out. 1996. Andrade M.
Helena Rebelo de, História das Grandes Pandemias de Gripe, Pathos 9 Out. 1996.
Ann H. Reid and Jeffery K. Taubenberger. Origin and evoluition of the 1918
“Spanish influenza” virus hemagglutinin gene. Proc Natl Sci USA. Feb.16, 1999.
Ann H. Reid and Jeffery K. Taubenberger. Characterization of the “Spanish
influenza” virus neuraminidase gene. Proc Natl Sci USA. Feb 6, 2000.
Arquivos do Instituto Central de
Higiene. Estatística do Movimento Fisiológico da População de Portugal. Ano de
1917. Arquivos do Instituto Central de
Higiene. Estatística do Movimento Fisiológico da População de Portugal. Ano de
1918. Arquivos do Instituto Central de
Higiene. Estatística do Movimento Fisiológico da População de Portugal. Ano de
1919. Cecil, Texbook of Medicine Crosby A. America’s Forgotten Pandemic.
Cambridge Univ. Press, Damião Peres. História de Portugal, edição de Barcelos.
(Suplemento). Instituto Nacional de Estatística. Anuário Demográfico. Ano de
1939. Kolata G. Flu: the story of the great influenza pandemic of 1918 and
search of for the virus that caused it. Touchtone, Rockfeller Center. New York.
1999. Luís Trindade. A Morte Anunciada, revista “História”, Nov. 1998. Mário
Marques. Patologia da Ilíada. Oxford JS. Influenza A pandemics of the 20th with
especial reference to 1918: virology, pathology and epidemiology. Rev. Med. Virol.
2000 Mar-Apr. Pirenne J. Les Grands Courants de L’Histoire Universalle. vol. VI
(1904-1939). Rodrigues AS (coordenador). História de Portugal em Datas, Círculo
de Leitores. Veloso AJB, Medicina a Arte e o Oficio. Edit. Gradiva 2000. »
Palavras-chave:
Covid19, História da Medicina, Pneumónica, Saúde pública.
Introdução,
adaptação e resumos de Alfredo Ramos Anciães, Março de 2020
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