segunda-feira, 11 de fevereiro de 2019

SÃO JOÃO DE DEUS. UM SANTO PORTUGUÊS E IBÉRICO. UMA OBRA E UM CONTEXTO MUSEOLÓGICO


(Um dos pavilhões da Casa de Saúde do Telhal / Sintra)
Palavras-chave: Casa de Saúde do Telhal; Instituto São João de Deus, Portugal, Psicologia, Psiquiatria
O menino que viria ser santo nasce em Montemor-o-Novo, no Alentejo. Batizado com o nome de João Cidade. Seu pai vendedor de produtos locais e a mãe doméstica, como quase todas as outras mulheres que não iam para o Convento ou não pertenciam à nobreza.
Aos 8 anos, o menino João Cidade desaparece. Consta que foi “levado pelo vento”.
Encontrámos outras interpretações. Os pais de João tinham raízes judaicas e na altura acharam melhor que o menino crescesse noutra parte da Península por considerarem que estaria mais seguro. Entre a teoria do mistério “levado pelo vento” e a da segurança encomendada, pode haver uma terceira razão, a de que poderá ter sido raptado com intenções de ser usado e vendido. Recomeça a sua vida como ajudante de pastor em Europesa, na Andaluzia espanhola. Quando chega à idade adulta, de tão educado e boa imagem queriam casá-lo com uma filha dos patrões. João não estava virado para o matrimónio e vai à procura de outra vida, integrando-se nas fileiras militares.
De um modo geral Espanha mantinha muitas lutas, sobretudo de fronteiras. João aceita ser soldado em prol do Imperador do Sacro Império Romano-germânico, Carlos V que mantinha um diferendo de territórios com o também poderoso rei Francisco I de França. Passada esta fase, João Cidade vai para Gibraltar e conhece um nobre português que caíra em desgraça presumidamente por motivos de crenças religiosas e/ou políticas. Em Ceuta o nobre fica falido e deserta para terreno mourisco. João Cidade terá então trabalhado em precárias condições, quiçá na construção das muralhas da cidade. Retorna à Andaluzia e torna-se livreiro, vendendo e doando livros de temática religiosa.
Guterres Lasso, de Málaga, um cavalheiro e cavaleiro da Ordem de Santiago recebe João quando este aparece a pedir esmola. O Cavaleiro fica encantado com a simplicidade e a candura do pobre João Cidade. Estabelece-se uma amizade que vai ser muito benéfica. João recorre frequentemente a quem tem posses para conseguir donativos e saldar dividas realizadas em proveito dos pobres e doentes.
Num intervalo da sua vida regressa a Montemor-o-Novo passados cerca de 30 anos de ausência mas os pais já tinham morrido e praticamente ninguém o reconheceu. Regressa a Espanha. João nascera a 8 de março de 1495 e falece no mesmo dia e mês do ano 1550. Esta coincidência e a capicua 55, número de anos da sua vida, são interessantes; bem como o período que permanece na História, ou seja, toda a primeira metade do século XVI. João assiste a contrastes tremendos. São interstícios da História, os finais da Idade Média, os Descobrimentos, os inícios da globalização; o encontro de outros povos, outras terras; as Reformas religiosas e os limiares dos renascimentos culturais, em geral.
Particularmente, as exigências das Reformas Protestante e Católica, sendo esta também chamada Contra-Reforma, no sentido em que há as grandes reações às primeiras, quer no campo teórico, quer no militar, no inquisitorial e do Santo Ofício. Devemos ter em conta que no campo inquisitorial há um sério aproveitamento dos poderes políticos laicos. Os reis chegam a comprar à Igreja de Roma a autorização e introdução dos Tribunais do Santo Ofício.
Em 1517, tem João 25 anos, surgem as exigências de Lutero, que já vinham de traz por exigências de alguns teólogos reformistas-precursores e dos príncipes alemães. Precisamente nesta altura João Cidade ainda não se interessaria pelo mundo eclesial mas em seu torno já havia mexidas nas igrejas e nas mentalidades. Não tarda a surgirem os místicos espanhóis nas terras por onde anda João Cidade. João D`Ávila, o pregador e filósofo escolástico vem a ser Doutor da Igreja, considerado o “Apóstolo da Andaluzia” e tornado santo. Os seus sermões foram determinantes na mudança de vida de João Cidade. 
Em seguida vêm João da Cruz, Teresa D`Ávila e Pedro de Alcântara, também tornados santos. Surgem já na última fase da vida de João Cidade mas as fontes filosóficas e de interpretação do religioso vêm das décadas anteriores.
No Convento dos Cardaes pudemos, no ano transato, observar a azulejaria com a história destes místicos - São João da Cruz e Santa Teresa D`Ávila. E na vizinhança, no Convento de S Pedro de Alcântara, encontra-se a iconografia deste santo com toda uma expressão que nos informa sobre os sentimentos e as mentalidades da época na Península Ibérica.
João Cidade adere com todo o empenho às práticas caritativas cristãs após um arrebatamento de consciência, depois de ouvir um dos sermões proferidos por S. João de Ávila. De tal forma João Cidade fica transformado que doa todos os seus bens aos pobres e apregoa pela cidade que devemos tomar o caminho da misericórdia, incluindo o perdão e a fratrimonialidade. Tão veemente se expressa que é considerado louco e internado num hospital para alienados, onde o tratamento destes doentes é severo e desumano.
O citado sermão foi para João Cidade uma espécie de epifania em que lhe é revelado o mistério salvífico e lhe é mostrado o próprio Cristo na figura dos pobres e doentes.
Questões de mentalidade tradicional religiosa levam a crer que os loucos são seres possuídos pelo diabo, logo uma entidade que não merece bom tratamento. João sofre na pele todo este sofrimento que lhe serve de experiência e aprendizagem. É com os pobres e os loucos que João vai crescer em espiritualidade e em métodos curativos.
A “loucura” de João seria a comovente caridade cristã de amor. João aprende que os pobres e doentes mentais, o que mais precisam é de compreensão, diálogo, compaixão e assistência alimentar. E vai conseguir com o seu acolhimento uma relação e assistência aos alienados que podemos considerá-lo um precursor nas áreas da psi. Aplicando os métodos do acolhimento, da tolerância, da empatia e da proximidade, João avança séculos nas áreas da psiquiatria e das doenças psicossomáticas.
As práticas de Freud e Carl Roger confirmam que as doenças da psique numa mente perturbada geram doenças físicas. São os traumas, os rancores, as mágoas, a incompreensão e as misérias que geram estas doenças e que João de Deus com a sua experiência, fé e entrega consegue minimizar. João dedica-se a estas causas de comunicação e dignidade através da audição, da compreensão, da alimentação e da enfermaria. Como não pode fazer tudo sozinho, adopta e divulga o lema: “fazei o bem, irmãos, para o bem de vós mesmos”.
Outra frase chave que lhe é atribuída designa-se pela expressão: “tudo perece / só a boa obra permanece”.
Por outras palavras e mui resumidamente os seus métodos assentam na fé, esperança e caridade, ou seja, no tríptico clássico do cristianismo, cuja caridade permanece essencialmente na compaixão e no amor (amor que não exige ser, necessariamente, recíproco) pelo próximo. Os últimos anos da sua vida já são acompanhados pela Cúria Romana. Com o empenho desta figura ibérica, nascida em Montemor-o-Novo nasce uma Obra a que foi dado o seu nome.
A Ordem Hospitaleira de S. João de Deus tem hoje uma história indeclinável no campo da saúde. Está implantada em mais de 80 casas-hospitalares de 45 países da Europa e do Mundo. Pôde e pode a Igreja católica demonstrar que se empenhou e empenha na Reforma eclesial.
João Cidade, convertido/transformado em João de Deus veio em boa hora.



Fontes:
-ÁLVARES, Valentim A. Riesco, fr. ; WALD, Emerich Steiger, fr. – Imágenes de San Juan de Dios. Roma: Ed. Curia Generalizia Ordine Ospedaliero di San Giovani di Dio, 1995
-FILIPE, Nuno Ferreira, O.H. – São João de Deus: um Homem que soube amar. Lisboa: Edições Paulistas, 3ª ed., 1990
-RTP1 et al - Portugal em Direto – Casa de Saúde do Telhal. 125 anos ao serviço do apoio a doentes com problemas de saúde mental in https://www.facebook.com/cst.telhal/videos/348665852390525/




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