sexta-feira, 20 de março de 2015

38. PORTUGAL É MEMÓRIA É PRESENTE É MAR E É FUTURO


Portugal é Memória, é Presente, é Mar e é Futuro que clama por sucessos mil. Os sinos da Sé de Lisboa dão o sinal de início de Revolução para a Reconquista da Independência e Liberdade.

“Tlão … ressoam os bronzes da sé … tlão … badaladas, lentas no respirar suspenso … tlão … arrastadas no nervoso dos corações … tlão … seus semblantes rígidos, olhos vigilantes … tlão … cinco … as mãos aferradas às coronhas das pistolas … tlão … seis … dos punhos de punhais, dos cutelos … tlão … sete … ih! cum raio! … tlão … oito …

Ao soar da última pancada, as sentinelas vêem chegar um fidalgo que se apeia de pomposo coche, como a ter audiência com Sua Excelência o secretário de estado … [Miguel de Vasconcelos].

- A esta hora? – dá um passo em frente um dos guardas, a alabarda atravessada a barrar caminho.- Sua Excelência está ainda recolhido. Não é ocasião de despacho. Mostrai-me a convocatória …

- E quem és tu para me embargares a subir? – e o punhal resolve o caso, vai o outro a abrir a boca a gritar o alerta, já alguém surgido do lado lhe corta o grito com a lâmina afiada.

Saídos das sombras dos arcos, sobem os revoltosos a escadaria a toda a pressa. Sentem o arruído os alabardeiros e acodem de armas em riste. Cruzam-se, tinem, faíscam espadas, soam tiros, Miguel de Almeida, de saber em punho, assoma à varanda – esvoaço-lhe [é o vento a narrar] os cabelos brancos – e grita ao povo:

- Liberdade! Liberdade! Tempo de comprar com sangue a liberdade da pátria e acabar com a tirania de Castilha. Viva Sua Alteza o duque de Bragança! Viva el-rei Dom João quarto!

Em baixo, com eco, lágrimas a escorrerem pelas faces, reboa o clamor das gentes:

- Viva el-rei Dom João quarto!

O troço destinado ao forte põe em fuga os soldados castelhanos. Não sem luta. Combatem rijo […]”  (1)
 
&

Torres e sinos de transmissão mensageira

No meu país sois património

de importância primeira.

Despertais atenção e comunicação;

quiçá dor alvoroço alegria aflição

tempo festa folia reunião e revelação.

Por altura da Páscoa lembram-me os toques dos sinos na minha aldeia. Excluindo o período de paixão e vigília (2) desde tempos remotos se utilizaram os sinos. Regularmente ao alvorecer podia ouvir o toque das almas. Ao meio-dia e cinco minutos o Ângelus lembrava a Anunciação do Anjo Gabriel a Maria. Os fiéis respondiam com uma Avé Maria. Antes do cair da noite tocava a Trindades. Eram momentos para reflexão, oração e recolhimento. Alguns pais faziam questão de que os filhos estivessem em suas casas antes do ecoar da última badalada.

À tarde tocava para o terço e/ou missa; aos domingos e dias santos tangiam sonoridades para as eucaristias. O último toque do dia fazia-se com o cair da noite. Era o toque das almas ou toque das Avé Marias. A estes toques de rotinas juntavam-se os toques horários. Com a eletrificação, o velho relógio de carretos e cremalheiras foi substituído e automatizado. As horas passaram a ecoar através de um par de altifalantes instalados na torre. A automatização permitiu assinalar horas e meias horas antecedidas do Avé Maria.

No dia de Páscoa tocavam os sinos pela tarde inteira enquanto decorria a passagem do pároco e comitiva pelas casas transmitindo os cumprimentos e a Boa Nova: “Cristo ressuscitou, aleluia, aleluia”. Fora das rotinas, os sinos anunciavam cerimónias e avisos: batizados, casamentos, enterros. Os toques a rebate aconteciam em caso de fogos em casas, aos quais acudia a população com cântaros, regadores, machados … Em caso de incêndios nas matas, tocavam a rebate, tomavam-se enxadas e ramos para extinguir chamas.

Distintos em mais de uma dezena de casos, os toques têm o seu código próprio. As várias sonoridades, ritmos e frequências determinam o tipo de informação que veiculam. Podem tanger sons tristes ou alegres, lentos, rápidos ou ultra rápidos, dobrados ou singelos, fortes ou leves. Em caso de morte, permitem informar o tipo de pessoa: adulta ou criança. Hoje em dia continuam vários destes trechos sonoros. Os sinos cumprem várias funções: de sinalização horária, chamadas para cultos, cerimónias e emergências. De tão presentes e disponíveis, quase não interiorizamos o seu real valor. 

Nas últimas décadas os sinos perderam alguma importância, fruto de alterações na vida social e tecnológica. Os relógios de pulso e telemóveis, hábitos diversos, televisão, informática e uma quebra de hábitos religiosos têm determinado alterações de hábitos. O toque dos sinos passa despercebido, sobretudo para os mais novos. Todavia começa a haver um novo olhar e sentir destes objetos, seus toques e códigos. Há exemplos de musealização de torres, sinos e casas de sineiros. Um exemplo: “Em 23 de outubro de 2014, a Sé de Leiria, incluindo o claustro, adro envolvente, a torre e a casa do Sineiro, foram classificados como monumento nacional” (3) . Em algumas torres e casas de Sineiros decorrem exposições de vário teor.

 
Torre e casa do  sineiro de Leiria. Imagem gentileza do blogue picosderoseirabrava

Outro exemplo vem-nos de Minas no Brasil: “As igrejas de São João del-Rei tem (sic) um interessante e peculiar sistema de comunicação através dos sinos. Sabe-se por exemplo, pelo repique, dobre ou toques onde será realizada a solenidade; se haverá procissão; hora de missa, quem será o celebrante e muitas outras informações. Nos dobres fúnebres fica-se sabendo se a pessoa falecida era homem ou mulher e até mesmo qual será o horário do funeral […]” Cf. OLIVEIRA: 2007 (4). Devido a este património histórico, cultural e turístico, os toques dos sinos foram classificados como Património Imaterial Brasileiro em 2009, dando-lhe o Governo Estadual de Minas Gerais e São João del-Rei uma importância cultural e turística da maior relevância.

 
Imagem da torre sineira da Beselga

Vivendo no Adro da aldeia (Beselga-Penedono) muitas vezes aos domingos ouvia: “Já tocou duas vezes, tocou a terceira, só falta o pique”, após o que se seguia a Eucaristia. Lembro o grande incêndio na casa dos Titas (5). Era alta noite, os sinos deram o alarme. Acorreu gente de todo o povo. Mulheres e Homens com cântaros cheios de água. Na altura, cerca de 1960, não havia luz elétrica nem água canalizada. Os sinos eram o grande auxiliar, sem eles seria difícil ou impossível circunscrever e extinguir incêndios; alertar para perigos em tempo útil.

É comum situar-se o início da utilização dos sinos por volta do século VI, altura em que começam a ser paulatinamente construídas igrejas nos povos convertidos ao cristianismo. O som era considerado a “Voz de Deus”. Afugentavam perigos, unia as pessoas, davam-lhes segurança. Há inclusivamente sinos com inscrições “Fugo fulmina, ventos dissipo” segundo investigação do antropólogo Paulo Ferreira da Costa (6).

Dizia uma figura típica da minha Terra - o Alberto Pereira, mais conhecido por Alberto Francês:

“Não há sinos tão afinados como os da Beselga. Quando bem tocados parece que subimos ao céu”.

A este preceito também escreveram autores de referência como Miguel Torga caracterizando diferentes modos de operar os sinos. Em Novos Contos da Montanha (1966) dizia este sóbrio Duriense:

“Os sinos tocavam festivamente, ia por toda a aldeia um alvoroço de noivado […] pela coragem com que puxavam a corda do badalo, pela maneira como repicavam ou dobravam, sabia-se a que terra pertencia o cadáver que baixava à cova. Cada aldeia enterrava singularmente os seus mortos. Os de Leirosa, bonacheirões, pacíficos, pobres, tocavam pouco, devagar, sem vontade e sem brio. Mas já os de Fermentões, espadaúdos, carreiros e jogadores de pau, homens de bigodaça e de mau vinho, davam sinais de outro modo, viril e triunfalmente.” (7).

Hoje em dia os sinos continuam a ser imprescindíveis mas, ainda que pudessem ser dispensados, conviria preservá-los como património memorial e instrumentos de comunicação de recurso, tal como acontece com o código de Samuel Morse, o código de bandeiras, os faróis e faroleiros e os pombos-correios, porque nunca se sabe quando os sistemas modernos podem falhar. Todavia há esperança. As torres e os sinos vêm sendo objeto de salvaguarda e de aproveitamento para funções nobres ou mesmo musealizados.

 
Imagem de torre sineira e de relógio da Horta - Faial. À curiosidade desta peça de arte e funcional acresce o facto de que é um dos poucos exemplares de torres sineiras independentes da arquitetura das igrejas, tal como acontece em Leiria, Penedono ... 

O presidente do Cabido da Sé chegou a ouvir “modinhas populares” tocadas pelos sinos e, depois da implantação da República, há informações de que foi pedido ao sineiro "para tocar 'A Portuguesa' e outras melodias republicanas"(8). As torres, sinos e toques estão para alindar, informar e animar todo um bairro, aldeia, vila, cidade. São património material e imaterial contribuindo para a diversidade, a riqueza urbana e turística.

CARO LEITOR DESEJO-LHE UMA PÁSCOA COM BOLOS MIMOS E FELICIDADES MIL

 Notas e fontes em linha:

(1)CAMPOS, Fernando – O Lago Azul. Viseu: Difel, S. A.; Tipografia Guerra, 2007, p. 304. OBS. Caro leitor. Se puder adquira este livro. O Autor tem veia literária, também de historiador, cientista e filósofo. Nesta obra ele descreve, através do romance, páginas de História de Portugal e dos descendentes de D. António Prior do Crato que terá sido proclamado Rei de Portugal após a morte de D. Sebastião e reinado, sobretudo nos Açores. Fernando Campos põe o vento como narrador; este está em todo o lado, em todo  parte ele pode ocorrer, descrevendo, tomando partido, maroto por vezes. Além do romance dá-nos a conhecer o destino do rei exilado e da sua prole, que é também a prole do rei Venturoso D. Manuel I. O ambiente entre católicos e protestantes, o nascimento da nação holandesa, as paisagens suíças, as guerras de religiões, o definhar de Portugal quando integrado na monarquia dos Filipes, a Restauração da Independência de Portugal ... Um livro pleno de conhecimentos que ajuda a esclarecer a nossa própria identidade; também as virtudes do amor e a malignidade da sua antítese.
 
(2)Na altura do tríduo, após a crucifixão e até à vigília pascal o acesso aos sinos da Beselga era interdito. Contudo permitia-se o uso dum instrumento a que chamávamos tréculas, construído em madeira e tabuinhas volantes que batiam umas nas outras fazendo imenso barulho. Através deste instrumento a rapaziada encarregavam-se de avisar os paroquianos dos momentos mais expressivos da Paixão. O Oiteiro do Pregão era um dos locais preferidos para tocar as tréculas, tal como o foi noutras situações de transmissão da voz natural e do som.

(3)Torre e casa do sineiro de Leiria in http://pt.wikipedia.org/wiki/Torre_Sineira_(Leiria) 

(34OLIVEIRA, Silvana Toledo de “Revista Eletrônica de Turismo Cultural”, 2º semestre, 2007 in http://www.eca.usp.br/turismocultural/silvana.pdf

(5)Consta que os irmãos Titas (António e José) enlouqueceram com as minguas da miséria no pós II Guerra Mundial, o final da laboração das minas de Santo António da Granja de Penedono e a morte do seu pai, não tendo a mãe conseguido lidar com tal situação. O António permaneceu na aldeia e de vez em quando fazia viagens, mais ou menos prolongadas pela região. Tinha o hábito de abordar as pessoas a quem passava “cheques” (geralmente um pedaço de papel qualquer) pela compra de um determinado bem, geralmente imóveis. Não consta que alguma vez tivesse feito mal a alguém. Já o José era menos comunicativo e ditou a sua sentença de reclusão quando foi acusado de ter ateado fogo à casa. Foi então levado para um asilo até que por lá morreu.


(7)TORGA, Ob. cit. 12ª Ed. 1952, p. 41; 65


&




-O toque dos sinos em Minas Gerais  in http://portal.iphan.gov.br/portal/baixaFcdAnexo.do?id=1870


5 comentários:

  1. Caro amigo Alfredo Anciães, é altura de ler textos destes, que acordamos para o valor dos sinos. Que não nos custa ver neles, a excelência do quantos eles, representaram e ainda representam, na importante comunicação social das localidades.
    O assunto é bem relevante.
    Abraços

    ResponderEliminar
  2. Olá caro Daniel,

    Sempre grato pela tua visita e agradáveis comentários.

    Um abraço.

    ResponderEliminar
  3. "A MINHA ALDEIA BESELGA"
    Na minha aldeia, ao entardecer,
    costumavam os sinos repicar,
    em alegria e fragor,...
    à hora das “Ave-marias.
    Costume antigo, rural,
    que a todos, lembrar queria,
    pelos campos em redor,
    que era hora de repousar.
    O tempo é outonal, tardio…
    e o dia está por um fio…
    Homens e mulheres voltam do regadio,
    partilha natural, nas nossas terras,
    em tempo de estio…
    Ao som do sino crepuscular
    começa-se a rezar:
    “Ave-maria, cheia de graça…”
    …enquanto, com pressa e graça
    se recolhem os utensílios
    do diurno, duro mourejar…
    E eu, que te venero, Maria, Mãe do Senhor,
    quase sem querer, entabulo conversa com a oração
    e começo a dizer, com amor:
    …”…bendita sois vós, entre as mulheres…
    e bendito o fruto do vosso ventre, JESUS…”
    (Gentileza do poema de Fátima Beco, 25.2.2011 in https://www.facebook.com/groups/beselga/, acedido em 23.3.2015)

    ResponderEliminar
  4. Caríssima conterrânea Fátima Beco. Parabéns pelo hino aos nossos sinos, sua partilha no facebook e aqui replicado.
    Bem hajas.
    aanciães

    ResponderEliminar